Segurança no ambiente de trabalho como direito universal e fundamental. PRECARIZAÇÃO E RISCOS
Por:
Silvana Abramo Margherito Ariano (Desembargadora Federal do Trabalho e membro
da Academia Paulista de Direito do Trabalho)
Existimos.
Vivemos. Vida. Para além do fato, direito humano fundamental. O mais básico
direito. É disso que se trata quando nos propomos a pensar o direito à saúde,
segurança e ao meio ambiente saudável no trabalho.
I.
Em 10 de dezembro deste ano de 2019 se completam 71 anos da adoção da Carta
Internacional dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral da ONU, em 1948, que
contém a Declaração Universal dos
Direitos Humanos3 que proclama em seu artigo 3.° que “Todo
indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. A Declaração
consolidou os fundamentos do reconhecimento, direitos e garantias da
necessidade de vida digna para todos os seres humanos, rechaçando a
desigualdade e a discriminação e apontando o caminho único e indivisível entre
os direitos civis e econômicos, sociais, culturais, e os ora integrados
direitos ambientais. A Declaração e os dois Pactos Internacionais de 1966,
sobre os Direitos Civis e Políticos - e seu Protocolo Facultativo, e sobre os
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, firmados no contexto do pós-Segunda
Guerra Mundial e da Guerra Fria, constituem a institucionalização universal dos
Direitos Humanos. O art. 12.1 do Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais estabeleceu, por sua vez “o direito de toda a pessoa a desfrutar o
mais elevado nível possível de saúde física e mental”.
A
confirmação expressa da universalidade, indivisibilidade de direitos, sua
interdependência e interrelação consta da Declaração e Programa de Ação de
Viena, adotada na Conferência Mundial
sobre os Direitos Humanos de 1993,4 e se constituiu em avanço
civilizatório e marco essencial do direito internacional, cuja efetividade é
objetivo permanente, especialmente em um continente tão desigual como a
América.
Adotou-se
assim o compromisso de todos os Estados com a promoção do respeito universal e
dos direitos humanos, sendo esta “a responsabilidade primeira dos Governos”. A
impossibilidade de fracionamento dos direitos humanos ou da supressão ou
suspensão de seu exercício em determinados momentos ou situações de vida é
decorrência imediata de tais princípios. E tal se dá pelo simples fato de que
os sujeitos portadores destes direitos são os mesmos indivíduos, pessoas
singulares e integrais, identificáveis, em suas relações com os outros
indivíduos e em sociedade. Todos eles decorrem unicamente da existência humana
e, portanto, é tarefa permanente a implementação profunda destes conceitos e
diretrizes a todas as relações de trabalho, de forma a erradicar
definitivamente a visão que considera que o trabalhador, ao iniciar sua jornada
se despe de seus direitos civis, políticos e sociais, para se colocar
incondicionalmente sob as ordens do empregador. Exemplos destas situações
extremadas estão nos trabalhadores submetidos a condições análogas a de escravos
e os trabalhadores infantis, mas que em diversas escalas, são encontradas em
ampla gama de postos de trabalho, sejam formais, informais ou precarizados
(art. 5.°, 2 do PIdesc).
O
documento “Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável,
adotado na Assembleia Geral da ONU de
2015 se constitui em um plano de ação para os agora próximos 11 anos e
instituiu os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), em número de 17,
além de 169 metas e 231 indicadores, colocando a igualdade, a universalidade e
indivisibilidade de direitos como centro de todas as ações para a erradicação
da pobreza em todas as suas formas e dimensões, dando-lhes tratamento integral
na observância das dimensões do desenvolvimento sustentável, a saber, a econômica,
social e ambiental.5
Dentre
eles, para a finalidade do tema em exame, destacam-se os objetivos de números 3
– Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as
idades; 4 – Assegurar a educação inclusiva, qualitativa e de qualidade, e
promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos; 5 -
Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas; 8 –
Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego
pleno e produtivo e trabalho decente para todos; 10 – Reduzir a desigualdade
dentro dos países e entre eles e 16 – Promover sociedades pacíficas e
inclusivas para o desenvolvimento sustentável, promover o acesso à justiça para
todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os
níveis.6
Elemento
essencial do objetivo n.° 8 e indissociável do atingimento de todos os demais,
o trabalho decente teve seu conceito consolidado pela OIT em 1999, com cinco
premissas: “trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de
liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna”7
, síntese dos valores e princípios primordiais orientadores de seus
instrumentos normativos, e implica na eliminação de todas as formas de
discriminação e garantia de proteção social.
No
âmbito da Organização Internacional do
Trabalho, dentre as inúmeras Convenções sobre saúde e segurança do
trabalho, destaca-se a de n.° 155, de 1981, inserida no direito interno em 29
de setembro de 1994, pelo Decreto n.° 1.254, que se aplica a todos os ramos de
atividade econômica e estabelece como fundamento essencial o princípio da
prevenção e a obrigação dos Estados de criação, manutenção e contínua
atualização de políticas públicas de saúde e segurança dos trabalhadores no
mesmo patamar das obrigações dos empregadores.
Em
consonância com a constituição tripartite da própria Organização Internacional
do Trabalho e fincada na necessidade de diálogo social, a Convenção 155 no seu
artigo 4.° reafirma a obrigação dos Estados membros de realizar consulta às
organizações de trabalhadores e empregadores mais representativos, para
“definir, por em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional
coerente em matéria de segurança, saúde dos trabalhadores e ambiente de
trabalho” com o objetivo de prevenir acidentes e riscos para a saúde
resultantes do trabalho ou que estejam a ele relacionados. Assim, estão os
Estados convenentes obrigados a consultar, ressalte-se, – e não apenas ouvir,
as entidades representativas dos trabalhadores e empregadores, e não quaisquer
entidades, mas as mais representativas, o que ganha maior relevância no
ambiente de pluralidade sindical e em especial em momento em que se discutem
alterações legislativas relativas à representação sindical no Brasil.
E
mais, na execução de tais políticas, a Convenção é expressa, em seu artigo 9.ª
quanto à obrigação dos Estados em assegurar um sistema de inspeção apropriado e
eficiente. Assim conclui-se que o Estado que ratifica tal Convenção, e em
especial seu Poder Executivo, não pode de forma unilateral instituir ou
modificar sua Política Nacional de proteção à saúde e segurança no trabalho sem
o estabelecimento de efetivo diálogo social a seu respeito e muito menos
reduzir ou restringir sua ação de fiscalização ou ainda deixar de implementar
as medidas necessárias à atividade desta que seja progressivamente mais
apropriada e eficiente, observada a universalidade de sua abrangência, sob pena
de inconvencionalidade.
Destacam-se
ainda a importância para o contexto atual, em face do recente rompimento de
barragem na cidade de Brumadinho e suas graves consequências, a Convenção 176,
sobre Segurança nas Minas e a correspondente Recomendação 183, de 1995 e a
Convenção 161, de 1985, ratificada pelo Brasil, sobre serviços de saúde no trabalho.
A
Convenção 187, de 2003, denominada “Convenção sobre o quadro promocional para a
segurança e saúde no trabalho”, cuja ratificação pelo Brasil é necessária e
urgente, se constitui em importante marco convencional em prevenção de
acidentes do trabalho e estabelece em seu artigo 2.°:
Qualquer
membro que ratificar a presente Convenção deverá promover a melhoria contínua
da segurança e saúde no trabalho, a fim de prevenir lesões, doenças e mortes
causadas pelo trabalho através do desenvolvimento de uma política, de um
sistema e de um programa nacional, em consulta com as demais organizações mais
representativas de empregados e trabalhadores.
Constituem-se
em elementos centrais para a efetivação e promoção dos Direitos Humanos os
princípios de sua contínua ampliação, implementação progressiva e vedação do
retrocesso social, compromissos assumidos pelos Estados convenentes em
positivação expressa do artigo 2.° do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), promulgado pelo Decreto n.° 591, de 6
de julho de 1992, já referido, ao estabelecer:
1.
Cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por
esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais,
principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos
disponíveis, que visem assegurar, progressivamente, por todos os meios
apropriados o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto.
Observe-se
que o princípio da vedação do retrocesso social se subsume do próprio conceito
da progressividade dos direitos sendo ambos a própria garantia de sua
implementação e efetividade e decorrem do anseio comum de todas as comunidades
humanas de progresso e bem estar. Consequência direta de tais comandos é a
obrigação do Estado de implementar continuamente medidas que ampliem, tanto do
ponto de vista de sua extensão do catálogo de direitos, quanto no
aprofundamento da universalidade e da densidade dos já existentes, eis que, em
caso contrário, estará em situação omissiva quanto à sua obrigação de não
implementar medidas restritivas dos direitos já existentes, o que o coloca em
situação internacional de inconvencionalidade.
A
questão é central e se desdobra diretamente na garantia de segurança jurídica.
Ingo Sarlet8 destaca que a doutrina constitucional contemporânea vem
entendendo que o princípio da segurança jurídica é intrinsecamente vinculado à
própria existência do Estado Democrático de direito, com “status de
subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de
Direito” (op.cit, pg. 451). Nesse âmbito, o autor ainda destaca a proteção
contra o poder constituinte reformador, nas matérias de direitos fundamentais,
cláusulas pétreas da estruturação do Estado. No embate das concepções relativas
à extensão que deve ser dada à vedação do retrocesso social, em especial diante
das visões de estado mínimo praticada pelo neoliberalismo, o autor conclui que
o Estado necessário é o “apto a assegurar - de modo eficiente – nunca menos do
que uma vida com dignidade para cada indivíduo e, portanto, uma vida saudável
para todos os integrantes (isolada e coletivamente considerados) do corpo
social” (op.cit.).
II.
...
FONTE: Aqui
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