Profissionais de saúde enfrentam RISCO MAIOR com a Covid-19
*Por
Ruy Fernando G. L. Cavalheiro
A
tabela de Acompanhamento Mensal do Benefício Auxílio-Doença Acidentário
emitida pela Secretaria de Previdência do Ministério da Economia referente
ao ano de 20191 indica que naquele período foram registrados na base
de dados 5.158 acidentes de trabalho apenas na atividade
econômica de atendimento hospitalar — CNAE 8610. Esse número dá a média
de mais de 429 acidentes do trabalho por mês e desconsidera, pelos CNAEs
específicos, os serviços de atendimento a urgências, remoção, atenção
ambulatorial e outros que são, também, tipicamente atividades de saúde.
Tais
índices mantém o trabalho em atividades de saúde no Brasil como um dos mais
perigosos na prática, atrás apenas dos trabalhos em transporte rodoviário de
carga e no comércio varejista, superando as indústrias da construção e as
atividades agropecuárias. E mesmo essa predominância do transporte rodoviário
de carga e do comércio varejista se dá, aparentemente, em números absolutos e
não percentuais, eis que se tratam de atividades com centenas de milhares de
trabalhadores envolvidos.
Já
no ano de 2011 o Ministério Público do Trabalho havia chegado à conclusão de
que as atividades de saúde eram preocupantemente perigosas e causadoras de
acidentes do trabalho. Nesse sentido, decidiu colegiadamente, mediante a Coordenadoria Nacional de Combate às
Irregularidades Trabalhistas na Administração Pública — Conap, pela criação
de um Projeto Estratégico focado na proteção e promoção da segurança do
trabalho dos profissionais da saúde nos estabelecimentos públicos. Tal projeto
tinha como bases as normas específicas de cada atividade — enfermagem, medicina
e radiologia, especialmente — e a dicção da Norma Regulamentadora nº 32, do
extinto Ministério do Trabalho, que fixa os parâmetros de segurança e saúde das
atividades profissionais nessa área, cobrindo desde o atendimento até as
lavanderias, descarte de resíduos sólidos e regras de vestimenta.
No manual de atuação elaborado sobre o tema2 são listados os alarmantes
índices de acidentes do trabalho, bem como os de subnotificação de acidentes.
Também são identificadas rotinas padrão que as unidades de saúde poderiam
implementar por meio das Comissões Internas de Controle de Infecção Hospitalar
— CCIH, previstas no art. 2º, inc. IV do Decreto nº 77.052, de 19 de janeiro de
1976. O manual ainda apresenta um rol de diligências conforme as peculiaridades
de cada setor de uma unidade de saúde, bem como modelos de peças e ações
judiciais.
Como
o manual pontua, também deve ser considerada na análise desse risco a questão
do excesso de trabalho. Os profissionais de saúde estão submetidos à
perversidade da chamada “jornada de 12x36”, que significa doze horas de
trabalho seguidas de trinta e seis horas de repouso. Tais trinta e seis horas
são, na verdade, uma ficção, eis que abarcam as onze horas de descanso
interjornadas prevista no art. 66 da Consolidação das Leis do Trabalho. E
apesar de documentos de conselhos profissionais avalizarem tal jornada — como o
Parecer nº 008/2017/Cofen/CTLN, elaborado pelo Conselho Federal de Enfermagem,3
estudos existem que questionam a efetiva existência das pausas de trinta e seis
horas na prática, eis que os trabalhadores acabam por obter um segundo vínculo
intercalado entre aquele gerador das 12x36, ficando, assim, presos em jornadas
de doze horas todos os dias. Assim aponta Rêgo em estudo sobre o problema:4
Maurício
Martins de Almeida (2012) constata que é perceptível que após essa jornada
exaustiva, em que o trabalhador labora normalmente por oito horas e depois,
trabalha de maneira excedente mais quatro, é causadora de um grande stress e
gera inúmeros prejuízos biológicos ao profissional. Soma-se isso ao fato de
que, como já explicitado, geralmente o trabalhador da área da saúde acaba por
aprovar a jornada 12x36, devido à viabilidade de conciliar mais de um local de
trabalho no período de 36 horas equivalente ao seu tempo de descanso e lazer.
(ALVES, 2013).
Ainda
em concordância com Cássia Alves (2013), conclui-se que no contexto
socioeconômico brasileiro contemporâneo, grande parte dos trabalhadores recebem
salários aquém do necessário para com seus gastos, atraídos dessa forma, pela
possibilidade de aumento da renda mensal familiar a partir de mais de um
vínculo empregatício. Logo, depreende-se que não é diferente no caso dos
profissionais da saúde, que se submetem ao extenuante regime 12x36 atribuído de
mais de um local de emprego, para enfim conseguirem renda salarial
satisfatória.
Tais
profissionais não apenas trabalham quatro horas a mais do que as oito
constitucionais, visando aumentarem seus rendimentos, como, ainda, trabalham
todos os dias nessas superjornadas, o que, sem dúvidas, gera efeitos sobre sua
performance e atenção, como a literatura médica, acidentária e jurídica aborda
há décadas, tema objeto de análise nesta coluna em texto anterior.5
Reitere-se
que os dados de acidentes do trabalho de 2019 evidenciam que o risco no setor
continua alto, o que fortalece, forçosamente, a
constatação de que os trabalhadores hospitalares sob a pandemia do Covid-19 são
o principal grupo profissional expost
Nesse
sentido o Conselho Nacional de Saúde
editou a Recomendação n. 020 de 07 de abril de 2020,6 tratando do
trabalho de tais profissionais sob os efeitos da pandemia do Covid-19. Essa
documento recomenda a adoção de medidas de proteção que envolvem desde o acesso
a informações sobre as unidades de saúde, riscos de contágio e direitos dos
trabalhadores, como, também, medidas de organização e adequação às normas
técnicas pertinentes e medidas de preservação da saúde mental. Mas o foco
principal é o treinamento dos trabalhadores e a manutenção de ambientes de
trabalho seguros por meio da adoção e uso de equipamentos de proteção
individuais — EPIs — tais como máscaras e luvas, e equipamentos de proteção
coletivas — EPCs — que são placas, exaustores, torneiras, sabões, álcool em
gel, etc.
Não
destoam desse entendimento as manifestações do SindSaúde-SP, Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde do
Estado de SP7 e da Abrasco
— Associação Brasileira de Saúde Coletiva,8 que em textos sobre a
saúde dos profissionais de saúde realçam o alto risco de suas atividades e a
necessidade de adoção de medidas de proteção inclusive quanto a jornadas e
assédio.
Os
profissionais de saúde têm o dever de prestar suas atividades a quem esteja em
perigo ou em grave risco, mormente em situação emergencial como a ora vivida
com o advento da pandemia do Covid-19, como reconhecem Souza, Mobelli e Alencar9
em estudo dedicado ao direito de resistência de tais profissionais durante a
pandemia. Mas essas autoras reconhecem, consequentemente, que “os gestores
públicos e particulares dos centros hospitalares e de pronta resposta ao
Covid-19, sob pena de sujeição aos crimes de periclitação da vida e da saúde e
responsabilização civil e trabalhista, tem o dever de garantir a salubridade no
meio ambiente de trabalho”.10
Esse
dever de garantir a saúde e segurança dos trabalhadores nas unidades de saúde
em meio à pandemia do Covid-19 é tutelado e perseguido pelos sindicatos,
conselhos profissionais e pelo Ministério Público do Trabalho, os quais buscam
tanto prover a população com os serviços de saúde indispensáveis ao seu
tratamento na pandemia, como, também, garantir a saúde das médicas, enfermeiras
e demais profissionais de saúde que se ativam nessa heroica missão. Afinal,
profissionais de saúde doentes não poderão tratar da saúde da população.
*Ruy
Fernando G. L. Cavalheiro é
procurador do Trabalho, mestre em Direito, especialista em Filosofia do Direito
e em História e Filosofia da Ciência, além de associado do Movimento do
Ministério Público Democrático.
FONTE: Aqui
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